É com alegria que retomo as postagens do Liperama falando do espetáculo Por uma cabeça, produzido pelo grupo Os Soltos de Teatro e estrelado por três queridas participantes do Grupo de Estudos do Trabalho de Ator da FUNDAJ: Ana Dulce Pacheco, Regina Medeiros e Sofia Abreu. Construído com fragmentos de peças de Nélson Rodrigues, o trabalho consegue demonstrar que, indo além da polêmica que frases como “mulher gosta de apanhar” podem causar, a obra do grande dramaturgo revela filigranas da alma feminina como poucos autores foram capazes de abordar. Numa encenação que ecoa o mesmo tom onírico de textos como Vestido de Noiva e Senhora dos Afogados, Por uma cabeça é sensual, inquietante e cheio de referências do que podemos chamar de uma mitologia da mulher contemporânea. A marca desse espetáculo é o ícone "sapato-de-mulher", pontuando as cenas e demarcando um jogo subjetivo de atemporalidade onde a essência do feminino se eterniza num painel caleidoscópico, como se os anos das últimas seis décadas se transformassem num longo momento presente. Inocência, puberdade, desejo, casamento, maternidade, rotina, adultério, luxúria, velhice e morte, nada escapou aos olhos de Nélson nem à dramaturgia do também encenador da peça, Rafael Almeida, que conseguiu colocar tudo isso em cena de modo coerente e interessante. Esse fato se evidencia no modo provocador como as cenas se intercalam, se complementam ou se chocam, permitindo ao espectador recombinar esses conteúdos na mente, vislumbrando emoções e sentimentos que muitas vezes as palavras pretendem ocultar. Esse efeito encantatório e revelador é calculado e também deve ser creditado ao andamento da encenação, conduzido com segurança por atrizes tão cheias de paixão quanto as personagens que representam. Não me refiro apenas ao talento, até porque cada uma das atrizes tem potenciais específicos e experiências distintas. Refiro-me à dedicação que as equilibra e integra, nivelando vivências e expondo o que cada uma tem de melhor. Isso também se explicita no zelo com cada fragmento, construído cuidadosamente no tocante ao clima, às inflexões, à partitura corporal. Inclua-se aí um belo e requintado plano de luz (de Jathyles Miranda) e uma bem garimpada trilha sonora (também de Rafael Almeida), com sucessos de nomes que marcaram o imaginário feminino brasileiro, como Ângela Maria, Maísa e Dalva de Oliveira. Belo espetáculo. Para se ver mais de uma vez.